Cenas envolvendo conversas telefônicas são extremamente comuns na escrita de um roteiro.

Certamente, em algum momento do desenvolvimento da sua história, você vai se deparar com uma cena deste tipo.

Porém, é importante que você saiba como realizar corretamente a escrita dessas cena, para evitar os mesmos problemas que eu já enfrentei.

Antes de ouvir falar em expressões como intercut e sem fazer ideia de como estruturar essas cenas, já cometi alguns equívocos grosseiros.

Lembro de uma vez em estava escrevendo uma conversa telefônica entre duas pessoas e eu cortava de uma cena para outra, sempre introduzindo personagem novamente até a conversa encerrar.

Com isso, estendi por páginas uma conversa que deveria ocupar apenas uma página. A estrutura do roteiro ficou toda comprometida por causa disso.

Para entender um pouco melhor a importância de manter a estrutura, leia o post que eu fiz sobre como configurar o seu roteiro no Word. Lá eu explico como a estrutura ajuda na organização da produção.

Portanto, é essencial que se conheça a formatação correta de cenas envolvendo conversas telefônicas. E, ao longo deste post, eu vou tentar explicar melhor para vocês como isso funciona.

Para isso, vou levar em consideração três tipos diferentes de cenas que envolvem conversas telefônicas e explicarei a importância de estruturar as cenas de acordo com o olhar da câmera.

Então, vamos entender melhor cada uma dessas cenas, começando pelas:

Cenas em que só escutamos uma pessoa falando

A primeira cena é aquela na qual vemos e ouvimos um personagem falando o telefone, mas não escutamos a voz da pessoa do outro lado da linha.

Esse tipo de cena é relativamente mais fácil de ser escrita, pois não requer nenhum recurso adicional. Devemos apenas escrever as ações personagens e suas falas ao telefone.

Lembre-se, porém, de incluir no seu texto os silêncios referentes aos momentos em que o personagem está escutando a pessoa do outro.

Além disso, também é importante que o monólogo do personagem ao telefone não soe auto-explicativo.

Precisamos compreender o contexto da conversa, mas não queremos ouvi-lo repetindo em voz alta tudo o que a pessoa do outro lado da linha está falando.

Vejamos como isso funciona na prática.

Exemplo #01 – Queime Depois de Ler

Cena do filme Queime Depois de Ler

Nessa cena do filme Queime Depois de Ler, dos irmãos Coen, a personagem Linda Litzke (interpretada por Frances McDormand) recebe uma ligação que a acorda.

Originalmente, no roteiro, a cena se estenderia por um pouco mais de tempo, com a personagem falando com alguém do outro lado da linha que, a princípio, o público não sabe quem é.

Veja como os irmãos Coen descreveram essa cena no roteiro:

Trecho do roteiro de Queime Depois de Ler, escrito por Joel e Ethan Coen
Trecho do roteiro de Queime Depois de Ler, escrito por Joel e Ethan Coen

TRADUÇÃO:

Trecho do roteiro de Queime Depois de Ler, escrito por Joel e Ethan Coen
Tradução livre

Reparem como os roteiristas se utilizam de espaços entre o diálogo, inserindo informações adicionais (o ato de retirar o aparelho da boca) e também usam os três pontos (…), indicando as pausas na fala.

Essas pausas são justamente os momentos em que a pessoa do outro lado da linha estaria falando.

A cena final acabou sofrendo algumas mudanças. Os irmãos Coen misturaram o diálogo da cena seguinte, trazendo-o para esta cena. Esse tipo de mudança é comum de acontecer.

Então, antes de escrever a sua cena, pense se é mesmo necessário ao público escutar o que acontece do outro lado. Assim você evita a necessidade de correções futuras.

Vejamos agora outra opção de cena envolvendo conversas telefônicas.

Cenas em que escutamos ambas as vozes, mas só vemos uma pessoa

Outro tipo de cena envolvendo chamadas telefônicas é aquela na qual nós escutamos ambas as vozes os personagens que estão conversando, mas só vemos um desses personagens.

Ou seja, a cena se passa apenas em um ambiente na qual um personagem está conversando com outro que se encontra fora de quadro.

Essas cena são bastante similares à anterior, porém com a diferença de que, nesse caso, nós devemos incluir o diálogo da outra pessoa.

Vejamos algumas alguns exemplos de como isso funciona na prática.

Exemplo #02 – Pânico

Na cena inicial do filme Pânico, por exemplo, a personagem de Drew Barrymore é ameaçada por um assassino ao telefone.

A princípio, nós não vemos o assassino em cena. Porém, a sua voz é ouvida tanto pela personagem quanto pelo público.

Reparem, portanto, como o roteirista Kevin Williamson escreveu a cena de tal maneira a incluir a voz do assassino dentro daquele ambiente.

Trecho do roteiro de Pânico, escrito por Kevin Williamson
Trecho do roteiro de Pânico, escrito por Kevin Williamson

TRADUÇÃO:

Trecho do roteiro de Pânico, escrito por Kevin Williamson
Tradução livre

Alguns pontos importantes a serem analisados aqui. Williamson destaca a presença do telefone antes mesmo nos apresentar a personagem.

Além disso, é pela descrição que ele nos mostra que a personagem está falando ao telefone. Então, quando lemos a primeira linha de diálogo, já sabemos que se trata de uma chamada telefônica.

E quando escutamos a voz do outro lado da linha, o roteirista coloca a observação de que é uma voz “do telefone”.

Mas ele só coloca essa informação na primeira fala, não sentindo necessidade de indicá-la a cada linha de diálogo.

Exemplo #3 – Clube da Luta

Cena do filme Clube da Luta

O mesmo acontece nesta cena do filme Clube da Luta, na qual o protagonista vivido por Edward Norton telefona para Tyler Durden chamando-o para tomar uma cerveja.

A cena se passa todo no ambiente na cabine telefônica e nós nunca vemos Tyler Durden em cena. Porém, sua voz é escutada por nós e pelo personagem. Sua presença é corporificada por meio da sua voz.

Vejamos como o roteirista Jim Uhls escreveu essa cena:

Trecho do roteiro de Clube da Luta, escrito por Jim Uhls
Trecho do roteiro de Clube da Luta, escrito por Jim Uhls

TRADUÇÃO

Trecho do roteiro de Clube da Luta, escrito por Jim Uhls
Tradução livre

Assim como na cena anterior, aqui o roteirista aponta a presença do telefone em cena e nos diz que o personagem está falando ao telefone.

Isso exclui a necessidade de qualquer informação adicional, uma vez que já entendemos que a conversa acontece ao telefone, e não entre o protagonista e o porteiro (embora este ainda esteja presente em cena).

A identificação da “VOZ DE TYLER” também deixa claro que o olhar da câmera ficará o tempo todo no protagonista. Tyler não está presente, fisicamente, nessa cena. Apenas sua voz.

Aliás, se você já viu o filme então talvez você discorde em relação à ausência de Tyler (assim como vai notar as diferentes conotações deste diálogo). Mas isso é assunto para outra hora.

Cenas em que as duas pessoas aparecem em cena

O terceiro tipo de cena envolvendo ligações telefônicas é aquele no qual são misturadas duas cenas que acontecem em dois ambientes diferentes.

Nestes casos , é necessário utilizar um recurso chamado intercut.

O que é intercut?

Intercut, ou intercalar em português, é um recurso de escrita no qual duas cenas que acontecem em ambientes diferentes são misturadas em uma mesma sequência.

Vejamos como isso funciona na prática.

Exemplo #4 – Clube da Luta

Em outra cena do filme Clube da Luta, o protagonista Jack (Edward Norton) recebe uma ligação de Marla (Helena Bonham Carter).

A princípio, vemos apenas Jack em cena. Porém, a partir do momento que ele atende o telefone, passamos a ver também a pessoa do outro lado da linha.

Cena do filme Clube da Luta
Cena do filme Clube da Luta

Vejamos como o roteirista Jim Uhls estruturou essa cena.

Trecho do roteiro de Clube da Luta, escrito por Jim Uhls
Trecho do roteiro de Clube da Luta, escrito por Jim Uhls
Trecho do roteiro de Clube da Luta, escrito por Jim Uhls

Tradução

Trecho do roteiro de Clube da Luta, escrito por Jim Uhls
Trecho do roteiro de Clube da Luta, escrito por Jim Uhls
Tradução livre

Reparem como o roteirista usa o “intercut” como forma de indicar a mistura dos dois ambientes.

Porém, ao final da cena, ele indica onde a câmera deverá permanecer uma vez que a conversa acabe.

Ao indicar que Jack largou o telefone, o roteirista está dizendo que aquele é o momento em que a cena termina. A conversa termina na casa de Jack, não na de Marla.

Uhls deixa isso ainda mais claro ao identificar a última fala como a “VOZ DE MARLA”, mesmo recurso que ele utilizou na cena descrita anteriormente, para informar que Tyler não aparecia em cena.

Conclusão

Cenas envolvendo conversas telefônicas são comuns e, pelo que pudemos notar, são relativamente fáceis de serem escritas.

Porém, é preciso que você saiba exatamente como você quer que a sua cena aconteça no filme.

Você quer que só nós escutemos um personagem falando? Você quer que os dois personagens sejam ouvidos, mas a cena aconteça em um único ambiente? Ou você quer que o público veja e ouça os dois personagens?

Uma vez que você saiba isso, é só usar a técnica aqui descrita que melhor se encaixa na concepção do seu roteiro.

Espero que esse post tenha ajudado a tirar algumas das suas dúvidas a respeito da escrita de cenas envolvendo conversas telefônicas.

Até a próxima e boa escrita!